sábado, outubro 23, 2004

Desventuras do ministro não renovável

Num programa de acção nacional, há determinadas áreas vedadas, independentemente da orientação política do(s) partido(s) que lidera(m) o governo. Não se decide invadir Espanha por um conflito de armadores de pesca nos Açores; não se dinamita Luanda se Angola não pagar a dívida externa; não se determina um alerta de calamidade nacional se três pessoas entrarem num hospital com salmonela. Até ontem, pensávamos todos que também não se incluía a solução nuclear no pacote de opções energéticas possíveis, sobretudo quando o resto do globo se vê a braços com problemas terríveis de resíduos tóxicos e contaminação de áreas envolventes de centrais nucleares. Álvaro Barreto e Graça Carvalho, respectivamente ministros das Actividades Económicas e da Ciência e Ensino Superior, mostraram que afinal o leque de truques no arsenal político é mais amplo. E a velha ideia de Barreto voltou a ser discutida em Conselho de Ministros.
Confesso que encarei a escolha de Álvaro Barreto para ministro como um péssimo sinal para o ambiente em Portugal. Até então, cuidara que a célebre aposta no "ouro verde" de Portugal, discurso que marcou as políticas florestais da década de 1980 e que teve como brilhante resultado a eucaliptização do país e a consequente escalada de fogos anuais, marcara a sepultura da sua carreira, tamanha tinha sido a asneira. Mas não.
Barreto é um opositor das energias renováveis. Sempre o foi. Barreto é um defensor dos petróleos. Sempre o foi. Mas mesmo mais o empedernido filisteu poderia ter evoluído, sobretudo se tivesse percebido que as alterações climáticas e a crise energética são hoje problemas reais e não meras projecções para o século XXI. Barreto pensa que não. A solução para a nossa dependência doentia do petróleo alheio é agora a criação de centrais nucleares. Nunca da boca de Barreto se ouviu uma linha sobre racionalização energética, reciclagem de resíduos e materiais, apoio a fontes de energias renováveis, sanções a indústrias poluidoras. Barreto vive nos anos 1950 e, tal como a jangada de pedra de Saramago, afastou-se à deriva do mundo real.
Mas se Barreto já estava posicionado na grelha política, o mesmo não sucedia com Graça Carvalho. Intrigou-me o apoio entusiástico da Ministra da Ciência e do Ensino Superior, a mesma pessoa que, enquanto investigadora do Instituto Superior Técnico, fez parte de um fantástico projecto de teste da utilidade do hidrogénio como combustível para os transportes públicos do Porto e de mais três cidades europeias.
Diz-nos a imprensa de ontem e de hoje que foi Graça Carvalho quem propôs a solução nuclear, mas a ministra, embaraçada, não comentou a notícia no final do Conselho de Ministros. São precisos dois para dançar o tango, dizem os ingleses. Barreto encontrou a sua parceira.
Desconheço totalmente se há sensibilidade no actual conjunto de ministros para barrar este projecto louco. Houve, pelo menos, algum bom senso na recusa da aprovação instantânea, como se a opção de um país pela energia nuclear fosse uma mistura imediata de leite e Ovomaltine - decidimos e avançamos no dia seguinte.
Mas não deixa de ser profundamente irónico constatar a disparidade de pessoas e práticas no actual elenco governativo. Na mesma semana em que o secretário de Estado adjunto do Ministério do Ambiente anunciou novidades, cautelosas mas mesmo assim benéficas, na discussão europeia do comércio de emissões, alguns colegas pouco solidários propuseram uma solução nuclear para a crise energética nacional. Talvez num dia próximo escutemos Álvaro Barreto dizer que o país avançará alicerçado no ouro atómico. É suficientemente tonto para isso!

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