sexta-feira, outubro 29, 2004

A quem interessa a privatização das Águas de Portugal?

Lisboa é um turbilhão de mexericos e insinuações. Nas mesas e telefones das redacções, amontoam-se pistas deixadas por fontes anónimas ou identificadas, mais ou menos sérias, mais ou menos interessadas. Naturalmente, a minha mesa não foge à regra.
Debruço-me hoje sobre uma das conclusões das jornadas parlamentares do Partido Comunista Português (PCP) em Aveiro. O polémico Bernardino Soares anunciou que o PCP pedirá uma audição parlamentar sobre a reforma da gestão do lucrativo sector das águas. O pedido de discussão parlamentar promete e é tudo menos inocente. A privatização da empresa Águas de Portugal exige uma série reflexão, que possa encontrar a resposta à incontornável pergunta: em que medida a privatização melhorará o serviço prestado pela empresa?
A água não é uma mercadoria, disseram os responsáveis do PCP. Concordo. O sector da água é demasiado vital para ser colocado no mercado e para ser concessionado a um grupo de empresas e indivíduos. A água é um bem estratégico e é impensável que o Estado abdique da sua gestão. Como lidará um futuro governo perante uma crise de contaminação de determinado serviço de abastecimento? Que tipo de responsabilidades serão assacadas à empresa gestora? Quem assume a responsabilidade de resolução de uma crise de saúde pública, resultante da má vigilância ou conduta de um privado?
O PCP apresentou um trio de medidas que me parecem absolutamente vitais, embora as propostas comunistas de Aveiro tenham sido apagadas do espectro mediático e tenham visto luz apenas num terço de página do "Público".
1) Pedem os comunistas que, se a privatização avançar, o Governo imponha no caderno de encargos a divulgação regular de todas as análises do conteúdo da água para consumo humano. Nada mais justo. Um consumidor informado é um consumidor tranquilizado. Se tivermos um caudal de informação correcta e regular, temos instrumentos para medir a qualidade da água que ingerimos. Aliás, nunca se percebeu por que motivo estas análises são mantidas em gavetas e não afixadas na Internet. Será legítimo especular que, até agora, nem todas as análises reflectiram água consumível?
2) O PCP incentiva também o Governo a publicitar todos os contratos de concessão que impliquem utilização do domínio público hídrico. É um pedido natural, mas que, a ser concedido, tem o poder de uma bomba-relógio. Voltamos aos rumores que circulam nas redacções: se soubermos quem utiliza a água pública após a privatização, teríamos nós a surpresa de ver nomes conhecidos? Veríamos a quem aproveitou a privatização? Perceberíamos melhor a argumentação privatizadora? Percebo e respeito o pedido do PCP. Duvido que ele seja satisfeito e respeitado integralmente.
3) Por fim, os comunistas solicitam a revisão do Plano Nacional da Água, medida essencial de defesa dos direitos dos actuais e futuros consumidores num sector instável e que provavelmente apresentará sintomas de ruptura durante o século XXI
Chamo a atenção para a notável investigação de Filipe Duarte Santos sobre os cenários resultantes das alterações climáticas no século XXI. No capítulo dos recursos hídricos, a equipa deste docente da Universidade Nova de Lisboa escreve o seguinte (tradução do original inglês da minha autoria): "O previsível decréscimo do caudal dos rios no Sul de Portugal à medida que se aproximar o fim deste século, associado à crescente assimetria espacial e temporal da distribuição dos recursos hídricos, pode ter consequências dramáticas e, portanto, deve ser alvo de enorme preocupação." Chove cada menos. As reservas esgotam-se. A seca agudiza-se nas regiões áridas. A água será, não duvidem, um bem estratégico. Da sua posse resultarão tensões sociais, de impacte imprevisível.
No tempo que falta desta legislatura, tomemos nota da importante, mas aparentemente marginal, discussão sobre a privatização das Águas de Portugal. No parlamento, jogar-se-á o futuro. E lamentavelmente, o futuro comercializa-se.

1 comentário:

Anónimo disse...

Você não gosta dele, mas o ministro Nobre Guedes comprometeu-se hoje a não privatizar a Águas de Portugal. Esperemos para ver se ele cumpre antes de atirarmos pedras.