quarta-feira, novembro 17, 2004

O desígnio do mar

Irritam-me solenemente os desígnios nacionais, as vocações
lusitanas e as recordações distorcidas da glória de outros
tempos. Ciclicamente, temos desígnios nacionais inseridos no
discurso político e rapidamente esquecidos. É a nossa sina,
diria, para recuperar outro estigma discursivo.
Cumpriram-se agora dois anos sobre o desastre ecológico
provocado pelo naufrágio do Prestige, mas a efeméride passou
em claro, discretamente varrida para baixo do tapete da
actualidade sem memória.
Ironicamente, esta foi a semana que o ministro da Defesa e dos
Assuntos do Mar escolheu para anunciar a aplicação prática do
nosso desígnio oceânico. E fê-lo com a tradicional mestria no
domínio da arte comunicacional, acertando timings com jornais
e televisões.
Recapitulemos os passos da última semana, até porque
importa arquivar estas lições no manual do bom político.
Fase 1: O «Expresso», jornal de seriedade inquestionável,
avançou com uma manchete anunciando catastroficamente o
fim da soberania nacional sobre a nossa zona costeira. A União
Europeia absorverá a gestão de todos os recursos marinhos,
pelo que o futuro das nossas pescas será sombrio – escreveu
o jornal.
Fase 2: A Comissão Estratégica dos Oceanos anunciou a sua
dissolução futura, depois de entregue o caderno de
recomendações e sobretudo perante a ausência de medidas
políticas concretas.
Fase 3: Depois da tempestade, a bonança. Saído das brumas,
o ministro Paulo Portas anunciou um pacote de medidas
estratégicas, que reconciliará os portugueses com o seu
desígnio nacional e com a sua vocação marinheira. Foi
fotografado de boné, de semblante preocupado, enquanto
mirava nostalgicamente a água. Marcou-se um Conselho de
Ministros a bordo da "Sagres" e anunciaram-se protocolos
transversais, imagem dialéctica de marca dos novos tempos.
Organizou-se ainda uma lista de "Novos Heróis do Mar",
condecorados em velocidade supersónica e sob critérios nebulosos.
E pronto! Está feito! Leiam-se os destaques que, por exemplo, o
«Jornal de Notícias» redigiu hoje sobre a semana do mar:
Portugal deve ser nação oceânica! Há que aprofundar o
conhecimento! Desenvolvimento mais sustentável! Dar
visibilidade ao país no exterior! Criar um conselho
especializado.
O vazio das propostas é evidente. Uma mão cheia de coisa
nenhuma é o resultado do espalhafato que, arrisco prevê-lo,
extinguir-se-á amanhã ou depois sem qualquer resultado
prático. O governo dormirá de consciência tranquila; os
cidadãos extrairão a ideia imprecisa de que há um programa de
acção para recuperar recursos e oportunidades das actividades
marítimas. Os jornalistas partirão para outras não-histórias com
a mesma desenvoltura.
E entretanto, um país com 1,7 milhões de quadrados de área
marítima, equivalentes a 18 vezes a área terrestre, que possui
mais de 20 mil pescadores e 924 quilómetros de costa
estagna, sem ideias, como um barco-fantasma.
Deixo-vos por isso um rol de perguntas tristemente sem
resposta:
1) Alguém poderá garantir, dois anos depois, que o naufrágio
do «Prestige» não teria hoje o terrível impacte de 2002? A
vigilância melhorou? A capacidade de patrulha foi
incrementada? A capacidade de intervenção em derrames de
crude agilizou?
2) Não será absurdo que durante a semana do mar, em que
tanto se falou de acção e intervenção, ninguém tenha dedicado
uma linha que fosse ao Parque Marinho da Arrábida Luiz
Saldanha, única área protegida na zona costeira continental e
alvo diário de atentados ecológicos?
Talvez seja esse o desígnio nacional: esquecer o que está à
mão e partir para aventuras desmioladas, mistos de coragem
poética e inconsciência prática. Temos por isso o mar que merecemos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito desta posta. Abraço, OLima (ondas.blogs.sapo.pt)

Gonçalo Pereira disse...

Obrigado pela força. Vida longa para o Ondas.