quarta-feira, dezembro 22, 2004

O decreto maroto

Algumas notícias merecem reflexão e não devem ser comentadas a quente, sob risco de se cometerem apreciações injustas. Tive essa precaução a propósito de uma investigação do jornal "Público", assinada por Ricardo Garcia e publicada em meados da semana passada. Agora, passados que estão mais de sete dias e depois de verificar que a "lebre" foi levantada e rapidamente varrida para debaixo do tapete, é legítimo concluir que o assunto está terminado e podem, por isso, ser feitos juízos de valor. E, garanto-vos, o caso não é para menos.
A história conta-se em poucas palavras. O texto do decreto-lei 233/2004 sofreu alterações não autorizadas e não assumidas, produzidas depois de os Ministérios do Ambiente e da Economia chegarem a acordo quanto à versão final. E o que é o decreto-lei 233?
É a transposição para a legislação portuguesa da directiva comunitária que institui o comércio de emissões no nosso país. Lamentavelmente, a versão emendada e publicada modifica as penalizações acordadas para as indústrias que desrespeitem os limites de emissões de dióxido de carbono.
Escreve Ricardo Garcia: «O decreto-lei (…) traz não só um valor errado – 99 euros, ao invés de 100 – como fixa um limite máximo para estas multas: 14.400 euros até 2008 e 35.640 euros a partir de então. Na prática, as empresas que não cumpram os limites pagariam multas apenas por 360 toneladas de dióxido de carbono em excesso – um valor irrisório, se comparado com a dimensão do mercado de emissões. A térmica de Sines, por exemplo, emite por ano, em média, cerca de oito milhões de toneladas de dióxido de carbono.» Quer isto dizer que a mão anónima que modificou valores e disposições legais pretendia beneficiar largamente as indústrias poluidoras, desrespeitando o espírito da directiva comunitária.
O problema foi entretanto resolvido com uma nova decisão do Conselho de Ministros. Não é isso que me preocupa. Duas perguntas assaltam-me a mente desde o texto publicado no jornal: se não tivesse existido a investigação de Ricardo Garcia e a consequente exposição pública, alguém detectaria o erro publicado no "Diário da República" e agiria em conformidade? Mais grave do que isso: quem alterou as disposições legais?
É naturalmente possível que, na redacção do "Diário da República" tenham sido digitados erradamente os valores. Mas não é provável. Inclino-me, eu e a maioria das pessoas lúcidas, para um erro voluntário, uma manipulação grosseira, digna do chico-espertismo nacional, que tentou distorcer o espírito da lei como um miúdo que emenda a nota do teste antes de o levar ao encarregado de educação. A identidade do autor da emenda fica naturalmente ao sabor da imaginação de cada um. Eu tenho o meu suspeito.

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