quinta-feira, dezembro 23, 2004

À volta da co-incineração

José Sócrates é teimoso. Não é novidade. A teimosia já vem de longe e quem com ele contactou no período de gestão dos governos socialistas (primeiro como secretário de Estado e depois como ministro) sabe que o secretário-geral do Partido Socialista (PS) não muda facilmente de opinião.
Há quinze dias, analistas e rivais acusavam-no de ainda não ter proposto uma ideia que fosse para o governo da nação. Prepara-se para herdar o trono e, para tal, limitou-se a capitalizar com a derrocada santanista e a gerir silêncios. No sábado, porém, e graças a um artigo no "Diário de Notícias" que o acusava de abandonar o projecto de co-incineração que preoconizara para o tratamento de resíduos perigosos, o seu velho cavalo de batalha no Ministério do Ambiente, Sócrates passou ao ataque. Anunciou a recuperação do projecto em moldes semelhantes aos idealizados em 1998/1999, com as mesmas condicionantes. E no mesmo local. Gerou-se um pandemónio.
Sócrates é teimoso; Sócrates é casmurro; Sócrates não aprende. Com o frenesi próprio das campanhas, rivais e observadores responderam a quente. Muito se escreveu entretanto sobre a co-incineração. Carlos Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Coimbra, prometeu manifestações e protestos vigorosos; Pedro Silva Pereira, o homem do Ambiente no actual PS, corrigiu as mentes mais apavoradas, recordando que a co-incineração não seria aplicada a todos os resíduos, mas sim a uma pequena percentagem para a qual, de momento, não há soluções de tratamento ou valorização; a população da lusa Atenas refilou; alguns ambientalistas prometeram luta cerrada contra o projecto. E entre os gritos de esfola e mata, Nobre Guedes, ministro demissionário do Ambiente, resolveu também entrar na dança. A meu ver, o ministro foi a jogo sem trunfos, fazendo "bluff" com cartas que não tinha. Veremos o desenlace da partida de póquer nas próximas semanas…
Há dias, Nobre Guedes tinha concedido uma entrevista ao "Público" em que alvitrava a barbaridade de ter feito mais e melhor em quatro meses do que Sócrates em seis anos no mesmo ministério. Pura bazófia. Quando Sócrates foi ministro do Ambiente, Guedes provavelmente ainda pensava que um aterro era… um local onde os helicópteros poisavam! Ou, com um toque de malícia, que se podiam construir terreiros no Parque Natural da Arrábida sem dar cavaco às autoridades. Nobre Guedes, dizia eu, jogou forte e usou cartas agradáveis aos olhos ambientalistas. Anunciou a solução dos centros integrados de recuperação, valorização e eliminação de resíduos perigosos (CIRVER) como solução moderna e obviamente mais eficaz.
Não discuto os méritos da co-incineração ou dos CIRVER, nem os pressupostos científicos em que ambos assentam. Verdade seja dita, nestes últimos dias, falou-se muito e bem de resíduos industriais, perigosos e menos perigosos. Creio que não restam grandes dúvidas de que os CIRVER oferecem uma solução mais completa, embora não abranjam todos os resíduos.
Todavia, neste intrincado jogo de propostas e contrapropostas, ainda há cartas por jogar. Nobre Guedes devia ter dito que os municípios que receberão os CIRVER anunciados (Marco de Canaveses e Chamusca) ainda não sabem que resíduos serão tratados nos seus concelhos. Mais: segundo o "Jornal de Notícias", a CM Marco de Canaveses só discutiu a proposta na semana passada. Só então se soube a localização da unidade. Recordo que o ministro acusou Sócrates de optar por uma solução tacanha e ultrapassada quando ele tinha uma nova solução em «fase avançada». Leu bem. Em fase avançada. Um projecto que foi debatido na CM Marco de Canaveses há oito dias já está em fase avançada. Na Chamusca, embora a edilidade conheça a intenção governamental há três anos, preparam-se ainda documentos e visitas técnicas e não se conhece o local de instalação do CIRVER. É este ponto que verdadeiramente me aborrece. Um plano pensado em cima do joelho é apresentado como se uma aposta de longo prazo se tratasse. Alguém acredita?
Agora que as populações dos dois municípios souberam que terão no concelho centros integrados para tratamento de resíduos perigosos imagino o alvoroço – despropositado, é óbvio, mas tão inevitável como o dia suceder à noite. As evocações de tragédias. As críticas. As manifestações. O caos.
Um velho sábio dizia-me há tempos que o atraso científico de um país se mede quando existem mais astrólogos do que astrónomos. Tal é o nosso nível de cientificidade!
Perante tudo isto, que valor tem a proposta de co-incineração do engenheiro José Sócrates? Não é obviamente a solução perfeita. É melhor do que o depósito em aterro. É pior do que o tratamento em CIRVER. Todavia, não vejo motivo real para opor a co-incineração aos CIRVER, quando ambos são complementares. E reafirmo que, perante as evidências, os centros integrados estão apenas numa fase embrionária. Nem sequer são um bebé na incubadora, diriam as más línguas.
Sócrates é teimoso? Definitivamente. É vaidoso? Pelo que conheço, diria que sim. A sua solução é despropositada? Sinceramente, não me parece.

4 comentários:

Anónimo disse...

Li o "post" com atenção. Concordo com alguns pontos, discordo frontalmente com outros. A queima de resíduos deve ser entendida como a última solução, a última das últimas. Partir para a co-incineração quando já há alternativas mais ou menos com o mesmo custo, com melhores resultados e menores riscos parece-me uma aposta motivada apenas pela obstinação de um político que quer marcar o seu estilo de governação. Sócrates escolheu o cavalo de batalha errado. E vai pagar por isso no distrito de Coimbra. Pelo menos aí.
Marco Cunha

Anónimo disse...

A co-incineração tem um grande problema: ninguém a quer à sua beira. Se é Souselas, revoltam-se os locais; em Maceira, revoltam-se outros tantos. O país tem de meter na cabeça que em algum lado terá de ser erguida uma central de co-incineração de residuos perigosos.

Anónimo disse...

Esta posta assenta em pressupostos ultrapassados. A co-incineração não é solução: nem definitiva, nem complementar. Julgo que o povo português já se pronunciou devidamente sobre isso nas eleições de 2001 e 2002. Não lhe chegou aos ouvidos?
JP - Cacém

Anónimo disse...

A notícia publicada no Expresso de hoje dá-lhe razão, Gonçalo. Afinal, o governo não está a mostrar todas as cartas e pretendia mesmo criar uma unidade de co-incineração na zona centro. A minha leitura deste caso (embora não concorde consigo quando diz que a co-incineração continua a ser necessária, mesmo que para um núcleo reduzido de resíduos) revela foi o ministério do Ambiente que esperou o posicionamento do líde da oposição para depois marcar pontos com os CIRVER - que, de facto, como diz, estão numa fase embrionária.