sábado, fevereiro 12, 2005

A Causa das Coisas

Estranho período eleitoral, este. Olhando para a campanha sob o prisma ambientalista, haveria bons motivos para aspirar que o Ambiente regressasse à agenda polítia com a força de outrora. Mesmo o mais empedernido ambientalista admite hoje tristemente que esta causa perdeu força, perdeu capacidade de motivação. Não entusiama as massas ergo... não capta a atenção dos políticos.
E todavia esta era uma oportunidade de ouro. José Sócrates, principal líder da oposição, tinha um currículo praticamente realizado na arena ambiental, como secretário de Estado e como ministro. Acidental ou propositadamente, esta também foi a primeira ocasião em que o PSD investiu recursos nesta área e aceitou uma coligação com o Movimento Partido da Terra, que valerá ao MPT provavelmente dois deputados na próxima legislatura. No outro lado do espectro, tínhamos ainda o Partido Ecologista os Verdes, com as suas décadas de historial e um nível interessante de participação nas duas últimas legislaturas.
Ora, com estes condimentos todos, a receita, mesmo assim, falhou. Assisti, com interesse, a praticamente todos os debates e entrevistas com os candidatos de partidos já com assento parlamentar. Lamentavelmente, o Ambiente - com todas as suas especificidades e prioridades - foi resumido à co-incineração (co-inceneração na versão de Nobre Guedes!). Nada mais interessou, nada mais logrou furar barreiras e merecer discussão. Com tantos pólos já sintonizados para a causa, mesmo assim, o Ambiente foi sinónimo exclusivo de co-incineração.
No início de 2005, a Quercus lançou um repto, traduzido na definição de sete prioridades para a próxima legislatura (ver comunicado aqui):
1) A definição de um Plano Nacional de Ambiente e Saúde
2) A discussão de Zonas Livres de Transgénicos (não partilho deste ponto de vista - algum dia escreverei sobre ele)
3) Reformulação por completo da estratégia de conservação da natureza e reavaliação da importância do ICN
4) Definição e defesa dos instrumentos de ordenamento do território, com a blindagem da REN e da RAN à cabeça. Criação de um Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território e implementação dos Planos de Ordenamento da Orla Costeira
5) Discussão e apresentação de soluções para o tratamento de resíduos perigosos e urbanos
6) Publicação do há muito esperado Plano Nacional da Água e transposição imediata da directiva para a legislação portuguesa. Fundamentação dos Planos de Bacia Hidrográfica.
7) No campo das alterações climáticas, vigilância da aplicação do Plano Nacional de Alterações Climáticas, com especial relevo para a sua adaptação progressiva a um problema que ainda vai piorar, antes de melhorar.

Estes sete desafios (todos urgentes, todos essenciais) foram pulverizados pelo rolo compressor das campanhas eleitorais. Apenas o tratamento de resíduos da zona centro foi discutido e com pouca nobreza e sinceridade. Confundiram-se alhos com bugalhos e soluções prontas em tempo real com projectos ainda por desenvolver. Até ontem, repito, o Ambiente estava reduzido à dimensão que lhe dávamos nos anos 1960 em Portugal: sinónimo de luta contra a poluição. É pouco, muito pouco. Até ontem, porém, essa foi a sua única dimensão.
Ontem, acordámos com uma notícia partilhada, fenómeno moderno traduzido numa fonte muito altruista, que oferece a vários (quase todos) os meios de comunicação uma informação aparentemente exclusiva. E o que diziam as notícias? O governo socialista aprovara o projecto Freeport para Alcochete nos últimos dias do seu mandato, à revelia do estatuto de Zona de Protecção Especial de que grande parte da área gozava. Ou seja, depois de dois chumbos, o Conselho de Ministros (o último de todos presidido por Guterres!?!), excluiu a área do Freeport do perímetro da ZPE.O ministro do Ambiente, à data da polémica aprovação, era José Sócrates.
Não cederei à tentação de considerar apenas que a intervenção da Polícia Judiciária é suspeita nesta altura, a sete dias das eleições. É óbvio, porém, que esta coincidência temporal não deve ser esquecida.
Ontem à tarde, quer a Procuradoria Geral da República, quer a Polícia Judicária, comentaram o caso (que já levou à apreensão de documentos e material informático da CM Alcochete e da Reserva Natural do Estuário do Tejo) e afirmaram que José Sócrates, por ora, não é suspeito. Este por ora é diabólico. Permite todas as interpretações, todas as suspeitas. Mas é também um mecanismo de defesa das instituições.
O PS defende que esta questão se limita à escala autárquica, uma vez que foi a edilidade que aprovou o projecto. Mas o processo foi decidido em instâncias mais altas e, sobretudo, nos últimos dias de um governo. A suspeita é legítima e atinge Sócrates num ponto vulnerável: a sua imagem de ministro do Ambiente combativo e impoluto.
De repente, a martelo, entrou na arena mediática a discussão de mais um relevante tópico ambientalista: o ordenamento do território. Veremos o que a próxima semana nos revela. Seria irónico que um candidato que fez grande parte da sua carreira política na esfera ambiental fosse chamuscado precisamente por uma intervenção dúbia num processo conduzido nessa arena...

5 comentários:

Anónimo disse...

Não será por causa disto que deixarei de votar em José Sócrates. O Freeport não é tão importante como você e outros escreveram.

Gonçalo Pereira disse...

Nem eu peço a si ou a qualquer pessoa que vote em X ou Y! Mas o processo de aprovação do Freeport em Alcochete é, de facto, emblemático de uma forma muito portuguesa de apreciar as áreas protegidas. Na minha opinião, um processo desta natureza, que obrigou à reapreciação de medidas de ordenamento do território, implicou sempre a conivência ou, pelo menos, a aprovação distraída do Ministério.

Anónimo disse...

Obviamente o que está em questão não é se se deve ou não votar em Sócrates. A questão é mais vasta. Põe em causa a moralidades dos políticos e a credibilidade das instituições. É uma mal que nos mina! A aprovação distraída dos ministérios é infelizmente uma realidade que se arrasta há já longos anos. Resta saber se nos vamos conformar com o mal das instituições e com a fraqueza "moral" de quem supostamente nos dirige.

Anónimo disse...

Um processo como o do "Designer Village", posteriormente "Freeport", que andou para cá e para lá, não deixou ninguém distraído... E se apanhou, a "redução" da ZPE naquele local terá sido anulada já pelo Ministro Isaltino (outro dado a "distrações"...

Anónimo disse...

Um processo como o do "Designer Village", posteriormente "Freeport", que andou para cá e para lá, não deixou ninguém distraído... E se apanhou, a "redução" da ZPE naquele local terá sido anulada já pelo Ministro Isaltino (outro dado a "distracções"...