sexta-feira, março 04, 2005

Mancha por Limpar

«A instituição, de tão podre, não há-de cair porque não é um edifício. Tem que sair com benzina, porque é uma nódoa» - Eça de Queiroz

Passaram quatro anos – quatro, já – sobre o colapso da ponte Hintze Ribeiro, que provocou a queda abrupta ao Douro de um autocarro de turismo, de algumas viaturas particulares e vitimou 56 pessoas. Para a história, propôs-se o epíteto dramático de "tragédia de Entre-os-rios". Ficou.
Em jeito de inquisição, permitam-me algumas perguntas de retórica:
1) Poderá alguém assegurar responsavelmente que um incidente semelhante não teria hoje lugar?
2) Descansará a Justiça se alguns dos actuais 24 réus forem condenados? Intentará mais acções? E se a acusação não conseguir provar culpa, haverá mais diligências?
3) Que sequência vamos dar ao relatório final da Procuradoria-Geral da República, difundido em Março de 2003 (há dois anos, caramba, há dois anos!), que dava conta de irregularidades na fiscalização da actividade dos areeiros e da sua cumplicidade com o poder local? O mesmo relatório referia que os areeiros estariam, com razoável certeza, a extrair mais areia do que a contratada. Formularemos culpa? E o relatório pericial de 2004, que acentuava a ligação entre a extracção de areia e o rebaixamento do leito do rio – ficará esquecido?
4) Que garantias concretas temos hoje de que, mais acima ou mais abaixo no curso do Douro, não se estão a cometer os mesmos abusos?

Ninguém, repito, pode hoje assegurar resposta a estas quatro interrogações. Elas esfumam-se no ar, diluem-se à medida que os jornais preparam o noticiário do dia 5 e esquecem a efeméride que, durante a próxima década, merecerá honras de publicação anual. Nos meios de comunicação, habituámo-nos a este ritual de expurgação – lembramos tragédias e vitórias com carácter periódico, encontrando na temporalidade o único valor-notícia que justifica a publicação.
Partilho, pois, a convicção de que Entre-os-rios, para lá de uma catástrofe ocorrida numa noite fria de Março, é também uma mancha jornalística, um "dossier" à espera de ser investigado, um cenário de intensa actividade económica com potenciais danos para o ambiente e que poderá ter concretamente significado o desequilíbrio da estrutura.
Naturalmente, o jornalista não substitui o polícia, nem o tribunal. Longe disso. Mas cabe-lhe encontrar respostas onde as instituições hesitam, cabe-lhe questionar quando o inquisidor descansa, refeito. Quatro anos depois, é seguro dizer que nós, nos jornais, falhámos parcialmente a nossa missão.
Mais do que um monumento à beira-rio, creio que essa é a responsabilidade que ficámos a dever às vítimas.

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