(Declaração de
interesses: participei como orador no Congresso da Costa da Laurissilva, a
convite da organização.)
São Vicente,
Madeira, 10 de Junho. O que acontece a um ser humano quando sofre uma paragem
cardíaca? O sangue deixa de ser bombeado, os órgãos vão interrompendo o seu
funcionamento devido à falta de oxigenação até ao momento em que o próprio
cérebro falha. Imaginemos então como parábola que o sangue bombeado são os
recursos indispensáveis para gerir uma área protegida e que a cada órgão vital
corresponde um município.
Três municípios
da costa setentrional da ilha da Madeira chegaram a um consenso e organizaram
uma plataforma de convergência para melhor defenderem o interesse do património
natural dos seus concelhos. Por si só, esta convergência já seria tema de
notícia. Mas as sessões a que assisti durante os dias 8 e 9 de Junho
expressaram um entendimento mais profundo sobre uma das questões fundamentais
da conservação da natureza: a solidariedade, traduzida numa intenção de
distribuir equitativamente os rendimentos provenientes do turismo associado
especificamente à visita de áreas naturais.
A intervenção
mais ponderada do congresso pertenceu a Francisco de Castro Rego (FCR),
ex-Director-Geral dos Recursos Florestais e coordenador do Centro de Ecologia
Florestal do Instituto Superior de Agronomia. O seu raciocínio marcou as
palestras subsequentes. FCR socorreu-se dos dados do inquérito aos visitantes
da Madeira em 2010 (ainda para mais, um dos piores anos turísticos da ilha em
várias décadas, devido à enxurrada de 20 de Fevereiro, ao incêndio do Parque
Natural da Madeira e às repercussões geradas pela erupção do vulcão islandês de
nome impronunciável). Trata-se de um inquérito encomendado pela Secretaria
Regional de Turismo (que entendeu porém não participar no congresso).
Segundo FCR, mais de 30% dos visitantes da Madeira reconhecem que viajam para a ilha para
observar a natureza. Ora, com um volume anual médio de 5 milhões de dormidas na
ilha e com uma despesa média de um pouco menos de 100 euros por dia, é possível
estipular o valor turístico das áreas naturais, esquecendo outros serviços,
mais difíceis de estimar, como a capacidade de retenção de água, a concentração
de biodiversidade ou a função de segurança contra deslizamentos de terras. O investigador chegou a um número bastante razoável: cerca de 140 milhões de
euros das receitas turísticas da Madeira provêm directamente de turistas que
viajaram confessadamente para observar a natureza.
Vamos à segunda parte
da equação. Toda a floresta da laurissilva, património da Humanidade,
concentra-se no Norte da ilha; as veredas e levadas mais valorizadas situam-se
nos municípios do Norte (sobretudo, em São Vicente, Santana e Porto Moniz, com
algumas excepções em Machico). No entanto, as receitas do turismo
concentram-se, de forma esmagadora, nos municípios do Sul, particularmente no
Funchal, de onde partem todas as excursões, a maior parte dos percursos
guiados, onde se concentram as dormidas, os alugueres de carros e obviamente
onde se deixam as receitas da restauração.
É justo? Não
parece, particularmente quando a evolução demográfica dos concelhos do Norte
sugere que está em curso um processo de êxodo considerável. Por outras
palavras, existe sangue, mas não é bombeado para todos os órgãos e alguns
começam a denotar sintomas de falta de oxigenação.
Foram debatidos
vários modelos de transferência solidária de receitas neste congresso. Alguns,
admito, não fazem sentido para mim, como a aplicação de ecotaxas de passagem
aos visitantes específicos que visitam veredas, levadas ou outros ícones da
paisagem da laurissilva. Em tempo de escassez, a aplicação de mais taxas parece
contraproducente e não creio que deva ser o turista a assegurar a conservação
daqueles espaços. Parece-me bastante mais plausível a aceitação solidária desta
desigualdade regional e a canalização de recursos oriundos do turismo (uma
fatia dos tais 140 milhões de euros) para mecanismos de reabilitação da
economia local e de conservação da paisagem protegida, que conta aliás com mais
um ícone desde Junho do ano passado, com a criação da Reserva da Biosfera de
Santana.
A nível de
sensibilização, é possível igualmente abrir outros pontos fulcrais, como a
consciencialização do visitante para gastar algum do seu dinheiro no comércio
local dos municípios do Norte, sob risco de a sangria migratória que daqui
parte para o Funchal e para o exterior continuar a registar-se. E de alguns
órgãos cessarem por completo de funcionar por deficiências no sistema circulatório.
P.S.: muito
deste debate passou ao lado dos companheiros jornalistas dos órgãos de
comunicação madeirenses, que esgotaram a cobertura do primeiro dia do congresso
com sound-bytes da intervenção do presidente do Governo Regional. Foi pena!
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