domingo, junho 10, 2012

Mecanismos de solidariedade


(Declaração de interesses: participei como orador no Congresso da Costa da Laurissilva, a convite da organização.)

São Vicente, Madeira, 10 de Junho. O que acontece a um ser humano quando sofre uma paragem cardíaca? O sangue deixa de ser bombeado, os órgãos vão interrompendo o seu funcionamento devido à falta de oxigenação até ao momento em que o próprio cérebro falha. Imaginemos então como parábola que o sangue bombeado são os recursos indispensáveis para gerir uma área protegida e que a cada órgão vital corresponde um município.
Três municípios da costa setentrional da ilha da Madeira chegaram a um consenso e organizaram uma plataforma de convergência para melhor defenderem o interesse do património natural dos seus concelhos. Por si só, esta convergência já seria tema de notícia. Mas as sessões a que assisti durante os dias 8 e 9 de Junho expressaram um entendimento mais profundo sobre uma das questões fundamentais da conservação da natureza: a solidariedade, traduzida numa intenção de distribuir equitativamente os rendimentos provenientes do turismo associado especificamente à visita de áreas naturais.
A intervenção mais ponderada do congresso pertenceu a Francisco de Castro Rego (FCR), ex-Director-Geral dos Recursos Florestais e coordenador do Centro de Ecologia Florestal do Instituto Superior de Agronomia. O seu raciocínio marcou as palestras subsequentes. FCR socorreu-se dos dados do inquérito aos visitantes da Madeira em 2010 (ainda para mais, um dos piores anos turísticos da ilha em várias décadas, devido à enxurrada de 20 de Fevereiro, ao incêndio do Parque Natural da Madeira e às repercussões geradas pela erupção do vulcão islandês de nome impronunciável). Trata-se de um inquérito encomendado pela Secretaria Regional de Turismo (que entendeu porém não participar no congresso).
Segundo FCR, mais de 30% dos visitantes da Madeira reconhecem que viajam para a ilha para observar a natureza. Ora, com um volume anual médio de 5 milhões de dormidas na ilha e com uma despesa média de um pouco menos de 100 euros por dia, é possível estipular o valor turístico das áreas naturais, esquecendo outros serviços, mais difíceis de estimar, como a capacidade de retenção de água, a concentração de biodiversidade ou a função de segurança contra deslizamentos de terras. O investigador chegou a um número bastante razoável: cerca de 140 milhões de euros das receitas turísticas da Madeira provêm directamente de turistas que viajaram confessadamente para observar a natureza.
Vamos à segunda parte da equação. Toda a floresta da laurissilva, património da Humanidade, concentra-se no Norte da ilha; as veredas e levadas mais valorizadas situam-se nos municípios do Norte (sobretudo, em São Vicente, Santana e Porto Moniz, com algumas excepções em Machico). No entanto, as receitas do turismo concentram-se, de forma esmagadora, nos municípios do Sul, particularmente no Funchal, de onde partem todas as excursões, a maior parte dos percursos guiados, onde se concentram as dormidas, os alugueres de carros e obviamente onde se deixam as receitas da restauração.
É justo? Não parece, particularmente quando a evolução demográfica dos concelhos do Norte sugere que está em curso um processo de êxodo considerável. Por outras palavras, existe sangue, mas não é bombeado para todos os órgãos e alguns começam a denotar sintomas de falta de oxigenação.
Foram debatidos vários modelos de transferência solidária de receitas neste congresso. Alguns, admito, não fazem sentido para mim, como a aplicação de ecotaxas de passagem aos visitantes específicos que visitam veredas, levadas ou outros ícones da paisagem da laurissilva. Em tempo de escassez, a aplicação de mais taxas parece contraproducente e não creio que deva ser o turista a assegurar a conservação daqueles espaços. Parece-me bastante mais plausível a aceitação solidária desta desigualdade regional e a canalização de recursos oriundos do turismo (uma fatia dos tais 140 milhões de euros) para mecanismos de reabilitação da economia local e de conservação da paisagem protegida, que conta aliás com mais um ícone desde Junho do ano passado, com a criação da Reserva da Biosfera de Santana.
A nível de sensibilização, é possível igualmente abrir outros pontos fulcrais, como a consciencialização do visitante para gastar algum do seu dinheiro no comércio local dos municípios do Norte, sob risco de a sangria migratória que daqui parte para o Funchal e para o exterior continuar a registar-se. E de alguns órgãos cessarem por completo de funcionar por deficiências no sistema circulatório.

P.S.: muito deste debate passou ao lado dos companheiros jornalistas dos órgãos de comunicação madeirenses, que esgotaram a cobertura do primeiro dia do congresso com sound-bytes da intervenção do presidente do Governo Regional. Foi pena!

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